
Apenas uma semana depois de conhecer a Kika no brevet 200 km, aceitei o convite dela para participar da primeira edição do Heading Southwest, uma prova de ultra distância com quase mil quilômetros e mais de 16 mil metros de altimetria acumulada organizada pela Finisterra. Claro que tinha apenas uma vaga noção de onde estava me metendo, mas ainda dei um jeito de convencer outros amigos a se juntarem.
Como estávamos inscritos como dupla, o Artur aproveitou a passagem do amigo Vinicius Martins por Portugal para pegar dicas e discutir equipamentos. O Vini tem larga experiência em provas de ultra distância e tinha vindo para cá justamente para participar do BikingMan Portugal.
O tempo todo eu dizia para mim mesma: “será tipo uma cicloviagem em que você tem que pedalar por vários dias seguidos. Um tanto mais bruta na distância e no acumulado, mas ainda assim, uma cicloviagem”. Ô, santa ingenuidade!
Na véspera da largada, a retirada dos caps e dos trackers ocorreu durante um jantar, que serviu também para promover a interação entre os participantes e me permitiu conversar pessoalmente com algumas pessoas que eu já conhecia pelo Instagram e conhecer outras.
Dia 1 – De Coimbra a Arouca (170.89 km / 3,346 m)
O primeiro dia de prova seria sentido norte. Passamos pela Mata do Buçaco, um lugar que ainda não conhecíamos. A subida não era tão longa nem muito íngreme, mas eu não sou lá muito fã de pavés. Em algum momento, paramos para pegar mais água e fiquei surpresa quando vi um dos ciclistas da categoria solo passar, já que eles largaram antes. Acabamos por ultrapassá-lo quando ele foi almoçar. Fizemos algumas subidas juntos e falamos sobre combinar outras voltas, já que o João Palmas também mora em Lisboa.
O ponto alto do dia (literalmente) era a Serra da Freita. Gostei bastante de passar por ali e relembrar uma caminhada que fizemos em 2020 naquela região. Antes de chegarmos a Gestoso, perguntei a uma senhora se poderia encher as caramanholas com água da torneira e ela me entregou uma garrafa de água mineral. Isso fez toda a diferença porque depois não encontrei mais locais onde podia pegar água.

Quando achei que começaríamos a descer, a primeira surpresa da rota: um tramo de pavé em meio a campos floridos. Já disse que não gosto de pavés, mas era impossível não gostar desse lugar tão lindo. A descida veio na sequência e teve que ser feita com cautela por causa do limo e nos cantos e também pela chuva que havia molhado o caminho.
Em Arouca, passamos no supermercado e fomos para a hospedagem do dia, onde ouvimos histórias do dono da casa e jantamos um macarrão preparado pelo Artur.
Dia 2 – De Arouca a Lagares da Beira (140.14 km / 2,968 m)
Dormi feito uma pedra, mas por menos tempo do que gostaria. Depois de prepararmos o café da manhã e organizar tudo, partimos para a primeira subida do dia, que seria seguida pela Serra da Arada. Estava ansiosa e ao mesmo tempo com receio de encarar o Portal do Inferno, que também já conhecia por causa do trekking do Morto que Matou o Vivo.

Subi com calma em direção ao Portal do Inferno e aproveitei para colocar em dia os podcasts do Petit Journal. Depois, apesar das subidas íngremes, em alguns pontos, foi possível pegar embalo e pedalar apenas um pouquinho para atingir o topo. Dei bom dia a dois ciclistas que encontramos pelo caminho e um dele respondeu que o dia poderia estar melhor. E ele nem fazia ideia dos nossos planos. Quando estávamos mais no alto, reencontramos a Pau e a Moey e conversamos um pouquinho antes de seguirmos.
Aproveitamos o Lidl no caminho em São Pedro do Sul para comprarmos água e comida. Este dia já foi mais difícil para mim porque comecei a ficar enjoada e não conseguia comer direito, então abandonei a Coca-Cola e apelei para o Red Bull.
Nossa hospedagem do dia era em Lagares da Beira e, como chegamos cedo, até pensei que deveríamos seguir um pouco mais, mas não o fizemos. Ficamos em um camping rodeados por holandeses e apesar do cansaço, foi a primeira noite mal dormida. Acordei várias vezes com o nariz entupido e sem conseguir respirar direito.
Dia 3 – De Lagares da Beira a Ameixoeira (167.68 km / 3,200 m)
Acordei uma hora e meia antes do horário programado, mas deixei o Artur dormir um pouco mais. Saímos em direção à Oliveira do Hospital e as longas descidas só confirmaram o pensamento de que deveríamos ter esticado um pouco mais no dia anterior.

Estava com receio da subida do Adamastor, pois a Kika havia dito que era bem bruta. Não sei se porque eu havia imaginado algo pior ou se pelo fato de já termos feito a Freita e a Arada, não achei tão ruim assim. Encaramos bastante nevoeiro no caminho até Loriga, onde paramos para um café.
A descida até Unhais da Serra foi feita com cautela por causa do vento que, pelas curvas ora era contra, ora era a favor. Tive o azar de encarar uma rajada de vento contra numa descida e ter que pedalar para atingir 13,8 km/h. Fuen!
Já conhecíamos o caminho de Unhais da Serra até a Aldeia de São Francisco de uma cicloviagem anterior, mas não tínhamos passado pela aldeia, pois optamos pela estrada da igreja. A subida parecia não ter fim e fizemos uma parada no supermercado do caminho, onde aproveitamos também para garantir o jantar e o café da manhã do dia seguinte.
Quando chegamos à São Jorge da Beira, meus olhos não queriam acreditar no que viam. Uma subida para cair de costas por dentro de uma aldeia. Com a quantidade de capelas que encontramos nesses 2 km de ladeira, brinquei que só com reza mesmo para encarar aquelas subidas do cão.
Embora tenhamos seguido por caminhos diferentes, passamos de novo por Cambas e, na chegada, eu levei o maior susto de toda a prova. A descida era íngreme e, quando estávamos perto do fim e eu estava embalada, um cachorro veio na minha direção com tanta vontade que já me preparei para o pior. Por sorte, ele recuou no último segundo. Ainda assim, tive que parar a bicicleta e esperar minhas pernas deixarem de tremer antes de continuarmos. Dormimos em Ameixoeira porque não estava a fim de começar o dia com a subida de Cambas como já tínhamos feito antes.
Dia 4 – De Ameixoeira a Marvão (123.54 km / 2,436 m)
Paramos em um café em Estreito para o desjejum e a senhora que nos atendeu foi uma fofa. Como eu estava enjoada, ela trouxe um biscoitinho para acompanhar o meu café já que “não se deve tomar café de estômago vazio”.
Pedalamos mais ou menos junto com a Jeane e o Guedes e ainda encontramos a Kristina que havia perdido a hora. Fizemos longas descidas e logo chegamos à Vila Velha de Ródão. Com o dia de céu limpo, pude ver melhor o caminho por onde já havíamos passado com a Kika. Encontrei um bom ritmo na subida e logo estávamos em Nisa, onde paramos para almoçar. A Jeane e o Guedes nos encontraram ali e o almoço estendeu-se um pouco mais do que deveria antes de voltarmos para a estrada.
Em Castelo de Vide, deixei a boleima de lado e parei apenas para comprar uma pomada para as assaduras que estavam a dar o ar da graça (ah, saudade dos tempos em que fazia brevets com leggings sem almofadinha). Tocamos para Marvão e a estrada era diferente da que havíamos pedalado antes. Embora a subida seja mais íngreme, gostei muito mais do caminho feito desta vez, mas tive que parar para conferir o GPS e confirmar que a entrada na cidade murada era pelo caminho menos óbvio. Pensando agora, não sei porque tive qualquer dúvida, já que a prova toda seguiu por caminhos menos óbvios.

Dormimos em Marvão e logo recebi uma mensagem do meu pai todo contente a lembrar de quando estivemos lá juntos. Ele foi uma das primeiras pessoas a me visitar quando nos mudamos para Portugal e quis conhecer a Serra de São Mamede, afinal, está no nome. ;)
Esta foi a primeira noite em que consegui jantar de verdade: arroz, batatas, ovos, salada e mousse de manga de sobremesa. Dormi com a barriga estufada, mas feliz.
Dia 5 – De Marvão a Renguengos de Monsaraz (160.69 km / 1,828 m)
O dia começou gelado, ainda mais com a descida de Marvão, mas a temperatura subiu logo, afinal, estávamos cada vez mais imersos no Alentejo. A região é bonita, porém, algumas zonas são um tanto monótonas quando estamos em cima de uma bicicleta. Há muitas estradas que parecem não ter fim e são onduladas o suficiente para nos obrigar a pedalar o tempo todo. Até brincamos que as descidas alentejanas parecem ter 2% de inclinação porque as bikes nunca embalam.
Logo chegamos a Estremoz e paramos no Lidl para um verdadeiro banquete. Aproveitei que os enjoos ainda não haviam voltado e comi bastante antes de partimos para a Serra d’Ossa, que só não foi mais tranquila por causa do calor.

Os últimos quilômetros até Reguengos de Monsaraz custaram mais a passar para mim justamente pela leve ressaca que estou das estradas alentejanas (15 dias antes do HSW, completei um brevet 400 km por essas bandas). Aliás, esta foi a quarta vez que estive nessa cidade e sempre cheguei e saí pedalando.
Fomos jantar no Chafarica Tapas & Wine Bar, que conhecemos durante uma minicicloviagem. Além de simpático, o dono do lugar é bom de papo e, se não tivéssemos mais 220 km para encararmos no dia seguinte, era bem capaz de pedirmos uma garrafa de vinho e ficarmos mais tempo por ali.
Dia 6 – De Renguengos de Monsaraz a Alte (219.73 km / 2,497 m)
A ideia de sair mais cedo para evitar um pouco do calor não deu muito certo. Ainda assim, seguimos bem até Mértola. Fiquei aliviada quando vi que o caminho até Moura não era o mesmo que havia feito no brevet e finalmente conheci a barragem de Alqueva.

A estrada depois de Moura era um tanto mais movimentada do que as que tínhamos pedalado até então; mesmo com o asfalto mais esburacado, os motoristas aceleravam como se estivessem numa corrida. Por isso, foi um alívio para mim quando chegamos ao trecho de gravel. Além de aliviar um pouco o calor, ficou bem mais tranquilo para pedalar. Como o David tinha avisado, a qualidade do gravel era realmente melhor do que a do asfalto onde estávamos antes.
Em Mértola, paramos para almoçar e ficamos de conversa com um cicloturista que ia de Faro para Estocolmo. Ali também cometi a besteira de pedir uma lasanha vegetariana ao invés de uma salada. Com o calor de 40ºC e a subida que veio na sequência, o estômago decidiu parar de colaborar e o restante da prova foi bastante sofrido, a ponto de eu ficar enjoada até mesmo com água.

Paramos em Doguenos para tomar sorvete, que felizmente, ainda descia bem, e depois fomos encarar as últimas subidas do dia. Não bastasse o estômago enjoado, comecei a ficar ofegante com qualquer mínimo esforço. Estava mesmo a me sentir miserável, porém, não tinha chegado até ali para desistir. O Artur avisou ao David que ainda demoraríamos um tanto e assim foi. Devagar e sempre.
Quando vi a primeira placa de Benafim, ganhei um novo ânimo e senti-me até mais forte para percorrer os quilômetros finais. Foi um alívio e uma emoção ao fazermos a curva e avistarmos o David a acenar para nós. Concluímos nossa primeira prova de ultra ciclismo.
Enquanto conversávamos, logo comecei a pensar em tudo o que poderia ter feito de maneira diferente para ter feito uma prova melhor, mas logo me dei também um puxão de orelha para valorizar o fato de que, apesar das dificuldades não esperadas, tinha alcançado o meu objetivo: terminar a prova antes do tempo limite. Que venham as próximas! :)
Deixo aqui os meus parabéns a todos os que participaram e também um agradecimento especial para o David que está a fazer um trabalho incrível pelo ciclismo de longa distância, de gravel e de aventura em Portugal por meio da Finisterra.